Este ensaio procura fomentar alguns aspectos concernentes à fixação da
imputabilidade penal da pessoa aos 16 anos de idade. Ele é, antes de
mais nada, um exercício de formulação de ideias e de questionamentos,
sem pretender indexar premissas, mas pontuar questões fáticas. A
intenção é produzir discussões, formulando mais perguntas que respostas
prontas e acabadas. Um balanço parcial será oferecido ao leitor, da sua
real disposição. Eis a sinalização da abordagem. Não se desconhece,
nessa linha de raciocínio, que a responsabilidade penal do adolescente
é um problema da civilização moderna e pós-moderna a que não se
emprestou, ainda, no país, a devida atenção, em especial no âmbito do
seu mosaico legiferante. Vive-se num sistema globalizante que a tudo e
a todos alcança, num vertiginoso processo de mudanças, alterando os
complexos quadros da informação, do social, da política e, pela lógica
posterius, do Direito Penal. Por meio de incontornável consequência é
sob a égide deste último que a afirmação social se institui.
É sempre bom lembrar que o Direito Penal, consorte indissociável das
relações sociais, faz o homem desfrutar do arbítrio, da palavra, do
poder, da moral, da ética, dos valores, dos princípios; enfim, da
subsunção à norma. Surge, em consequência, a complexidade existencial
das condutas ilícitas, de modo que ele se torna o protagonista
destinado a enquadrá-las, metrificando essas assimetrias de forma
pretendidamente eficaz. O Direito Penal não é, como se propala, direito
de ultima ratio, mas de prima ratio. Se fizer um estudo comparado dos
códigos penais do mundo, perceber-se-á o caráter pedagógico em todos
eles, pois encerram mandamentos como: não matarás, não furtarás, não
darás falso testemunho…
Cumpre registrar que a própria lei, a começar pela Constituição, é
contraditória, pois a idade para se tomar decisão na esfera civil é uma
e, na esfera penal, é outra. E não se pode argumentar que uma seja
menos ou mais importante que a outra, pois a lógica linear é a mesma
para ambas. E mais, por razões de topologia, ou de topografia
legislativa, a idade penal foi veiculada na Constituição, mas é norma
materialmente ordinária e não formalmente constitucional, como fizeram
os constituintes de 1988. Aliás, mais um, dos muitos equívocos.
De saída, não há qualquer impedimento constitucional para se propor uma
emenda supressiva ou modificativa do art. 228, a exemplo das várias que
tramitam no Congresso Nacional a respeito da temática.
Vê-se, nesse passo, que existe, porém, uma distância incalculável entre
o prisma civil e o espectro penal do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). Não é possível, ainda, por aqui, legislar sem
preferências e sem concepções míticas de ordem subjetivo-objetiva. A
impressão que se tem é que as censuras do ECA são eficientes, é o que
parece à primeira vista. Ocorre, porém, que para qualquer ato
infracional praticado por adolescente (crime ou contravenção penal), a
única medida socioeducativa que restringe a liberdade é a internação. E
ainda, o prazo máximo dessa medida é sempre o mesmo: três anos. Se o
adolescente praticar um estupro, um latrocínio ou um homicídio, a
medida será sempre a mesma, isto é, cumprirá 3 anos de medida
socioeducativa ou se atingir 21 anos, o que chegar primeiro. Daí o
motivo da sua banalização. O ECA, na parte referente às censuras
infracionais, está marcado com o selo da artificialidade.
Destaque-se que, em 2009, o adolescente com a idade entre 14 e 16 anos
encontra-se maduro, percebe o seu corpo apto, desfruta de um razoável
nível de compreensão e procura participar e interagir no seu processo
vital, mas é incapacitado pela legislação. A sua cidadania é postergada
por uma concepção legal que só lhe confere liberdade jurídica em alguns
aspectos; noutros, não.
Esclareça-se, por pertinente e a propósito, que não se propõe reduzir a
idade penal para arrefecer o percentual de violência, até porque os
crimes praticados por adolescentes no Brasil gravitam a órbita de 10%.
De igual modo, não se objetiva, com a 3 medida, a ampliação da lógica
repressiva do capitalismo contemporâneo. Muito menos pela maior
intimidação do Código Penal em relação ao ECA. A medida é proposta por
uma questão elementar de isonomia, isto é, pelo fato de alguém com 16
anos de idade ter consciência, amadurecimento, do ilícito que pratica!
E mais, a redução da idade penal, contrariamente do que muitos pensam
é, antes de tudo, um problema penal, não que ela não seja uma questão
psicológica, filosófica, sociológica, etc., mas o fato é que a conduta,
o dolo e a execução são, forçosamente, levados ao Direito Penal.
Não se perca de vista que ser criança, ser adolescente e ser adulto não
são fases que ocorrem linearmente, de formas estanques e claramente
definidas. Após as atuais revoluções, o limiar destas três fases se
atenuou, exatamente porque se tornou mais socializada a informação. A
demarcação das faixas etárias é convencionada. Assim, a idade da pessoa
não revela exatamente o que ela é ou deveria ser. Daí o porquê dos
andragogos, antropólogos, biólogos, filósofos, pedagogos, psicólogos e
sociólogos não conseguirem um consenso em metrificar o período da
infância e da adolescência.
Assinale, por outra verve que, no Brasil, há legislações que decolam e
outras não. Algumas leis de cunho penal inserem-se entre as segundas,
pois naufragam num viés de expansão numa ponta e de retração noutra. É
o caso do ECA ao combater os atos infracionais e os desvios de conduta
dos adolescentes. Os fatores criminógenos que regem o crime praticado
pelo maior de dezoito anos também regem aqueles praticados por
adolescentes. A vida do adolescente não é, como muitos imaginam, um
momento preparatório. Ela está acontecendo agora, de fato, como a vida
adulta! E mais, a multiplicidade de escolha dos adolescentes cinge-se
da piedade solidária ao cinismo criminoso.
Em reforço à lógica desta proposição, atente-se para a literalidade da
desculpa normalmente produzida para justificar a moratória penal
relativa aos adolescentes, eis que preguiçosa e setorial. Preguiçosa
porque sempre se deixa para depois enfrentar uma questão de singular
importância. E setorial porque o adolescente daqui a pouco será
“maior”, saindo desse “limbo”, mas novos adolescentes ocuparão o seu
lugar!
Nessa perspectiva é importante observar que o nível de sedimentação
legal, cívica e moral, do Direito Penal no país ainda dista algumas
léguas da sua real topografia. Isso para lembrar que há culturas com
padrões de sedimentação desse direito bem mais elevados que os do
Brasil. Os adolescentes podem viajar, residir em repúblicas, estudar
noutros estados e no exterior, contrair matrimônio, separar e
divorciar, ter filhos, ficar, emancipar, votar, etc. Não há mais espaço
para a ingenuidade dos jovens, pois que mais afetos às inovações.
É nesse espaço de discordâncias e de repensar de ideias que,
pretendendo oferecer um “basta” ao estado de “impunidade branca”, surge
a necessidade de se reduzir a idade penal. Existe uma parceria entre
adolescência e delinquência, porque o adolescente, por não ser
reconhecido dentro do pacto social, terá que ser reconhecido fora ou
contra ele. No Estado de Direito, a ampla liberdade das pessoas, e aqui
se inclui a dos adolescentes, não pode ser confundida com a liberdade
de delinquir. A noção de limite é fundamental em todos os aspectos, em
especial nos penais. Realizar mentalmente um gesto consiste em
antecipar as suas consequências, seja ele qual for. O adolescente
infrator de hoje não espera a idade adulta para praticar crime. A par
disso, é bom não dessaber que a imputabilidade penal é a regra, e a
inimputabilidade penal é a exceção!
Vista do ângulo que for, a moderna idade penal no Brasil ainda não
sinaliza um resguardo aceitável, pois se encontra emaranhada num cipoal
de incertezas jurídicas de variados matizes. É singular o paradoxo
existencial entre as diversas idades: civil, penal, eleitoral e
trabalhista e o seu efetivo cumprimento, mais especificamente na
produção das desigualdades em suas inúmeras verves. À guisa de
esclarecimento, o adolescente infrator, ao atingir 18 anos, ele o faz
como primário e de bons antecedentes. Nenhum crime por ele praticado na
adolescência, por mais horroroso que seja, é considerado após a sua
maioridade, se vem a praticar novo delito. Isso pode ser comparado ao
espírito mercadológico da adoção plena, em que a criança é destituída
de qualquer traço de sua história anterior para ser entregue limpa a
uma nova família.
Como é de primeiríssima intuição, os testemunhos coligidos nas diversas
obras que tratam do assunto ilustram o fato de que, aos 14 anos de
idade, a pessoa já pode ser responsabilizada por seus atos. Teóricos
multidisciplinares como Adler, Piaget, Vygotsky e Wallon, para citar
alguns, ao verificar como os fatores sociais comparecem para explicar o
desenvolvimento intelectual, hauriram conclusões bem mais incisivas, de
modo que a chegada ao estádio final da construção das operações
cognitivas complexas ocorre nas proximidades dos 12 ou 13 anos de idade.
Baseada em todas essas premissas, a proposta aqui veiculada cinge-se à
redução da idade penal aos 16 anos e, para alguns crimes, aos 14 anos
de idade. É necessária a ruptura que assume um prisma, muitas vezes,
explosivo, mesmo que para isso tenha que romper (pré) conceitos.
Nesses exórdios, vê-se, sobremais, que a temática fomenta a relevância
acadêmico-penal. E aqui se arrisca a fazer algumas interrogações que,
certamente, valerão uma ou mais reações dos leitores, mas melhor assim:
Como adolescentes podem, deliberadamente, planejar delitos cruéis?
É possível que não tenham a menor ideia do que estão fazendo?
Exige-se do adolescente algum conceito exegético, ex professo, do que
seja crime? Há alguma dificuldade em entender, de forma elementar, o
que é proibido e o que é permitido?
E punir o adolescente com as penas do Código Penal vai lhe causar
rebeldia, o que dizer da generosidade das medidas socioeducativas do
ECA?
Até que ponto responsabilizar o adolescente infrator pelo ECA reflete a realidade brasileira?
A Constituição, ao conferir ao adolescente a capacidade eleitoral
ativa, o faz por exigir responsabilidade para decidir os rumos do país
ou para repetir o rodízio eleitoral e a expansão dos políticos?
Essas interrogações se impõem, se precipitam e saltam aos lábios de
qualquer um, pois confundem as pessoas, esmagam as instituições e
estreitam os horizontes em termos de legítimas perspectivas.
Patentear-se-á convinhável asserir que, com os avanços sociais, a
ênfase, além de prevenir o crime, está muito mais em reprimir de forma
célere. Basta reler o clássico de Beccaria. A criança e o adolescente
devem ser tratados como pessoa em desenvolvimento, mas isso não os
permite estar acima da lei.
Esgrime-se, antes de mais, que a miséria, a pobreza, ou mesmo as várias
dificuldades sociais não autorizam ninguém, maior ou menor, a praticar
crime, salvo as exceções agasalhadas em lei. A dor, o prejuízo causado,
os danos morais e psíquicos causados pelo crime praticado pelo
adolescente são os mesmos causados pelos maiores de 18 anos. O
adolescente do novo milênio não é mais aquele ingênuo dos meados do
século XX.
Atualmente, o acesso à informação é quase compulsivo. Novas tecnologias
fazem parte do dia a dia dos jovens, a exemplo do telefone celular, de
MP3, internet, Ipod, correio eletrônico, MSN, rádio, TV aberta/fechada,
de modo que é impossível estar ilhado, alheio aos acontecimentos reais.
Está na hora – aliás, já passou da hora – de se reduzir a idade penal,
e não fazê-la é algo visto como uma clivagem no corpo social. O Direito
Penal não pode ficar a reboque das transformações sociais. A sua
pós-modernidade tem, em função das amarras que lhe são peculiares,
dificuldade em assimilar aquilo que é novo, pois lhe é estranho, mas em
doses homeopáticas isso ocorrerá. O Direito Penal foi e, de certo modo,
ainda é um grande desconhecido e representa, nesse “finca pé”, abrigo
desigual na República brasileira. Daí um Código Penal e um ECA
extremamente generosos com a variada criminalidade. Se há um lugar onde
adolescente pode “brincar” de ser rebelde, sem levar o troco, é no
Brasil.
Percepção de um ponto singular reside na delicada “trip” do Direito
Penal, pois é necessário definir claramente as questões a serem
enfrentadas, sem paixões, sob pena de menoscabar o Direito de Beccaria.
Está-se em 2009, não em 1940, de modo que reduzir a idade penal
tornou-se necessário, pois não há mais como se opor à irresistível
lógica dos acontecimentos e dos avanços sociais. Não é sem motivo que o
clamor popular enseja a ablação de posturas legais alheias à realidade
jurídico-penal.
Ao fim e ao cabo, não se pode continuar tratando o adolescente como
criança. A lei penal deve corresponder à realidade temporal e
geográfica onde incide, pois ela é construída por intermédio de
padrões. A redução da idade penal não deve ser entendida como uma
descoberta súbita, mas como uma multiplicidade de processos que a
marejam. Quando a pessoa é doente mental, a sociedade não lhe resguarda
expectativas de papéis, mas quando se é saudável mentalmente, incide a
teoria dos papéis e isso é algo que não se pode escotomizar! A
responsabilidade penal dos adolescentes, como já se escreveu, não é
ponte carroçável para resolver a delinquência juvenil, mas é um dos
vários referenciais para introduzi-la aos padrões aceitáveis.
Destaque-se que a nova idade penal englobará, na verdade, uma outra
“economia política” da imputabilidade penal, pois ela não tem um único
traço de aferição, mas vários a mãos de semear!
Fonte: Autor: Kléber Oliveira Veloso É professor de Direito Penal e de
Direito Processual Penal do Curso de Graduação em Direito, na UFGO –
Campus Goiás. Pós-Doutor em Direito e Membro Fundador da Academia
Goianiense de Letras. É membro da Comissão de Avaliadores da
MEC/SESu/INEP para avaliação, autorização, supervisão, credenciamento e
reconhecimento dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito nas
IES públicas e privadas. Retirado do site www.waldirdepinhoveloso.com em 24/01/2013.
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